quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Da Justiça [7] - O novo mapa judiciário

O acesso ao direito e à justiça é um direito constitucional. Mais um. A nossa Constituição tem esta mania compulsiva de dar direitos aos cidadãos.
Esse acesso ao direito pressupõe que não haja obstáculos à realização da justiça. Ora, o novo mapa judiciário obsta à realização da justiça onde ela se deve realizar. Ou seja, manda à fava os princípios basilares do direito e da justiça e especificamente os que versam e regulam os fins das penas.
Assim, nesta esteira, a pena aplicada a um determinado crime tem em si a função de retribuição, e a da prevenção. A retribuição como o próprio nome indica, visa castigar, numa perspectiva de estado de direito, todos aqueles que não cumpram a lei e por isso não coadunem a sua conduta com a vida em sociedade. A prevenção, num sentido mais lato, significa um alerta geral à sociedade de que para todo o crime existe um castigo, e como tal se devem abster de cometer crimes, porque a vida pacífica e salutar em sociedade de oportunidades iguais para todos assim o exige. É a protecção da anarquia. Da lei do mais forte. A prevenção tem também um sentido mais estrito. Prevenir que o autor de um crime volte a ter uma conduta errada e ilegal. É aqui que reside a possibilidade de reintegração e reinserção social, que, ao contrário de outros sistemas jurídicos, é um dos princípios mais nobres da natureza e do nosso sistema criminal.
Ao fechar valências e tribunais, em particular no interior do país, o governo em funções, aka ministério da justiça, fecha também a possibilidade das populações das zonas afectadas terem condições de acederem ao direito e à justiça em condições iguais aos seus concidadãos de outras zonas do país. Ou seja, comete o governo, o pecado original da inconstitucionalidade.
A proposta de lei que define o novo mapa judiciário, e agora reportando-me ao meu espaço de conhecimento, prevê que todos os concelhos do Alto Tâmega percam a capacidade de julgar os processos que impliquem o tribunal de júri ou colectivo e as acções cujo valor seja superior à alçada da Relação, ou seja, os crimes cuja moldura penal seja superior a cinco anos de prisão, de um modo geral, e as acções de valor superior a trinta mil euros.
Nessa proposta, refira-se ainda que todos esses processos passarão a ser julgados na sede de distrito, portanto, Vila Real.
Passando por cima do tema da descentralização, que obviamente neste caso funciona ao contrário, quando assim seria exigível, o busílis da questão põe-se então nos argumentos dos números e dos princípios já enunciados.
Não exigirá grande esforço de inteligência e perspicácia para se dar conta que o princípio de prevenção geral dos fins das penas deixará, pura e simplesmente de existir. Um arguido julgado a mais de 60 km do sítio onde ocorreu o crime não incute na sociedade a ideia de que para toda a conduta criminosa lesiva de um direito ou interesse alheio corresponde um castigo. Aí onde as pessoas  conhecem as vicissitudes e sabem as consequências.
Quanto aos números, vários exemplos concorrem para desmontar a teoria ora planeada. Puxando a brasa à sardinha do tribunal de Chaves, e segundo a própria estatística utilizada pelo ministério da justiça para justificar a sua desclassificação, temos que o tribunal de Chaves tem mais pendências processuais de direito do trabalho que Vila Real, processos que já têm que ser julgados na referida capital. Chaves tem mais pendências de grande instância criminal que Vila Real, os chamados colectivos. Se a Chaves se juntar o resto do Alto Tâmega então os números ganham contornos de escândalo e não se justifica tout court a desclassificação proposta dos tribunais em questão.
A lei da regra e esquadro sobrepôs-se ao bem senso legislativo, numa lógica perigosa de menosprezo economicista. Os exércitos de 'especialistas' e assessores que não conhecem as especificidades do país, muito menos de Trás-os-Montes, querem traçar, ignorantemente, a morte da justiça e do acesso ao direito da região.
E quem conhece a região sabe que, há aldeias do concelho de Montalegre que distam 200 km da capital de distrito. Há aldeias do concelho de Chaves que distam mais de 100 km dessa mesma metrópole e por aí fora. Não existem transportes públicos que possibilitem que as partes e as testemunhas se desloquem em tempo útil a Vila Real para um julgamento às nove e meia da manhã, sem perderem um dia de trabalho, ou dois. Se se deslocarem de táxi, a viagem não fica em menos de trezentos euros. Se tiverem viatura própria, então, os custos de combustível, portagens e almoço. No mínimo. Imaginem o caso, natural e recorrente, de o julgamento ser adiado, uma, duas, três vezes ou mais.
Mas existem mais especificidades nesta região. A neve e o gelo. Que implicam só!, a impossibilidade da deslocação.
Outro argumento pode ser e é, de facto, a  incapacidade orgânica e de espaço do tribunal de Vila Real. A ministra da justiça emitiu um ofício a solicitar à câmara municipal de Vila Real que lhe arranjasse um prédio para alugar e aí instalar as novas valências, pendências, juízos e juízes, funcionários, sistemas informáticos e afins. A  ministra já disse também que o nova mapa não visa uma teoria economicista. É caso para perguntar para que serve então? Que populações serve? Que justiça visa aplicar? Para quê sobrecarregar um tribunal, que será central (e que já funciona mal e logicamente fará pior) se os os que existem funcionam bem (caso de Chaves)? Onde está a celeridade? Onde estará a justiça?
Também não se pode ver a questão segundo uma visão corporativa dos agentes da justiça, nomeadamente dos advogados. Estes já se deslocam para inúmeros locais. Os custos de mais essa deslocação seriam comportados por quem apela à justiça para fazer valer os seus direitos. Mais uma acha na fogueira. Mais custos para a população que quer aceder a uma justiça cada vez mais desigual. São os custos da interioridade.
Argumentos recentemente utilizados pelo ministério? 0,02 % das populações é que recorrem à justiça! Ora, no concelho de Chaves corresponde a nada mais nada menos que 9 pessoas!!! Forte argumento.
Para muitas destas populações, principalmente as que vêm tribunais encerrar, será o regresso à justiça pelas próprias mãos e/ou a desistência de ver feita justiça. O desconsolo e o abandono. O abandono do Estado. À sua própria sorte. Na maioria dos casos corresponderá à total ausência de justiça. Por falta de pessoas que estejam dispostas a testemunhar, por falta de dinheiro, por falta de condições para as partes, por falta até de uma simples inspecção ao local. Será a denegação de justiça, que está tipificado como crime no nosso código penal. Será a ausência de justiça. Será a ausência do Estado. Será a injustiça.

P.S.- O executivo da autarquia de Chaves teve até ao momento um comportamento cobarde e vergonhoso. Não defende nem defendeu as suas populações. As que os elegeram. Não compreende nem quer compreender e muito menos explicar que serão elas a sofrer e a suportar os custos desta proposta. Cede a tudo e a todos. Não vê mais que o próprio umbigo. Não sabe. Nem quer saber. Chuta para canto. Não se compromete. Bem hajam os advogados de Chaves!

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