quarta-feira, 19 de junho de 2013

A greve que alguns professores deviam fazer

Formávamos uma fila à entrada da sala de aula, um pré-fabricado em madeira, onde a D. Maria Celeste, ainda não sei bem como, dava aulas à terceira e à quarta classe em simultâneo. A terceira classe entrava ordenadamente, um por um. A seguir, a quarta classe, afinal a idade é um posto. Ás segundas, quartas e sextas era dia de matemática. Ficava sempre para o fim da fila, receoso. Como detestava matemática! É daquelas coisas sem explicação. Os números nunca me fascinaram. Mas a D. Maria Celeste era exigente. Entrava cabisbaixo e sentava-me no lugar habitual. Mesas redondas com cinco ou seis colegas. Tinha o horror estampado nos olhos. Corria o ano de 1986. A sala de aula, ornamentada com os desenhos e trabalhos mais meritórios era um espaço que na altura me parecia do tamanho do mundo e albergava cinquenta a sessenta alunos. O pequeno almoço e o lanche ia na lancheira. A régua e as palmadas faziam-me engolir à força os números e as contas, e o português, a história de Portugal (em que ficava hipnotizado com a sua forma de a contar) e o Meio Social. Por vezes tinha pavor da D. Maria Celeste. A matemática, por minha teimosia ou defeito, tinha os dias contados.
Anos mais tarde, já depois de licenciado, e após dezenas de professores pelo caminho, reconheci-lhe o mérito de ter sido a mais marcante e melhor professora que apanhei no meu percurso. Não pelo respeito ou medo que incutia, mas porque ensinava a pensar, a calcular meios alternativos, a raciocinar, ao invés de se limitar a debitar informação (como a grande maioria fez nestes anos todos). O método podia ser por vezes questionável, mas vos garanto que era eficaz e sempre justo. Preparou-me para o resto da minha vida e nunca tive a oportunidade de lhe fazer a justiça que merecia. 
Existem mais D. Marias Celestes por esse país fora. Infelizmente, como em todo o lado, também existe o professor calão (não, não é exclusivo dos alunos), e num país em que a meritocracia é inexistente, essas maçãs podres contaminam o resto, tal como em todas as profissões. Conheci inúmeros professores calões, conheci alguns que me foram indiferentes, outros não o foram pelos piores motivos (qual dos dois o pior), e também tive o privilégio de ser ensinado (na verdadeira acepção da palavra) por outros que me ajudaram, de uma forma ou de outra, a moldar a minha personalidade. Estes, infelizmente, foram poucas excepções à regra.
A minha experiência pessoal pode ser a de muitos ou a de poucos, mas, uma coisa é certa, os professores que se manifestaram contra a política de avaliações de Maria de Lurdes Rodrigues, ao tempo do executivo socrático, foram, na sua maioria, os professores calões. Contra o mérito, contra a avaliação, contra os seus colegas que mereciam uma diferenciação positiva. O resto foram fait-divers.
Porque a minha memória não é curta, recordo o apelo de Cavaco para que os professores viessem em força para a rua.
E hoje? Hoje sim, tem razão de ser a greve e a manifestação dos professores. A mobilidade especial, a ameaça de desemprego, a redução salarial, a perda de direitos e garantias, o atropelo da Constituição com ameaças ao direito à greve, etc. Mas, tal como os professores, todos os funcionários públicos têm razões de queixa, a maior fatia de austeridade vai para eles.
Em nome da coerência, também devo dizer que há professores a mais, e funcionários públicos a mais. De quem é a culpa? Certamente não será deles, as políticas eleitoralistas dos últimos 30 anos levaram o país a basear toda a sua economia nos serviços. Em nome da verdade, o horário zero dos professores é insustentável, inadmissível e injusto para os professores de quadro a isso obrigados. A classe está macificada e nivelada por baixo. As políticas de educação, no ensino superior e afins, delimitaram uma fronteira larga demais, em que o acesso à profissão se tornou prejudicial para toda a classe. A meritocracia baseada na avaliação iria pôr um travão e maior justiça quer no acesso à profissão, quer no seu desempenho. Os calões e os sindicatos, por vezes ávidos de protagonismo bacoco não deixaram. Hoje por hoje a sua luta é justa mas só até certo ponto. Querer tudo, sem dar nada em troca é desleal. Quem sofre é a própria classe e principalmente os alunos.
Num outro campo, o verdadeiro responsável pela situação, Nuno Crato é o exemplo acabado da politiquice e do autoritarismo. A teimosia ditatorial representa sempre o desespero de quem não sabe comunicar, dialogar e não quer nem procura consensos. Obrigou milhares de alunos a fazer exame, não o desmarcando, enquanto outros tantos milhares não o fizeram, sendo, na mesma, obrigado a marcar nova data. Certamente que não estava à espera que os professores fizessem greve em Agosto ou no Natal? Ou estava? E agora, que foi obrigado, após uma lição democrática de humildade dada pelos professores em greve, a adiar o exame para quem não o fez, arranjou outro sarilho. Se o exame for mais fácil, esses alunos são beneficiados, se for mais difícil são prejudicados. Igual não pode ser. A igualdade de acesso à universidade ficou assim prejudicada por teimosia do ministro.

P.S. - A greve é um direito constitucionalmente garantido. Bem sabemos como este governo lida mal com a Constituição, mas definitivamente, não pode haver datas em que a greve não dá jeito e portanto não se pode exercer.

Sem comentários: