segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

1984 online

Liberdade de informação ou violação de correspondência? Liberdade de expressão ou violação de privacidade?

O Estado somos nós. Governo, Povo, Território. Mas existe um outro estado dentro do Estado. O estado online, da internet, da liberdade anárquica. Resta saber que Estado queremos. Com certeza, não queremos o Estado de "1984" de George Orwell, da novilíngua e do Big Brother, mas paradoxalmente, é disso que se trata cada vez mais no mundo da WorldWideWeb. A devassa privada, a revelação de segredos, o escrutínio do olho. A grande diferença reside no sujeito activo voyeur, não é o Estado do regime ditatatorial, não é o Estado do Povo. É o povo do estado. Assim, surgem os libertinários, anarquistas de um estado. Tudo é liberdade de informação, tudo é interesse público. Julian Assange e o seu Wikileaks. Porque é que os documentos diplomáticos do "cablegate" revelados no site Wikileaks têm que ser de interesse público? Porque é que as conversas privadas entre políticos e diplomatas têm que ser divulgadas e de interesse público? O que é que de verdadeiramente relevante vieram divulgar que não seja do conhecimento de todos? Que a Arábia Saudita tem medo do Irão nuclear? Já sabiamos. Que vários voos da CIA com presos políticos para Guantânamo passaram pelos Açores? Não deviam mas também já sabíamos. Que em Moçambique se trafica droga ao mais alto nível? E já agora que Sócrates é carismático, Berlusconi gosta de mulheres, que Putin é vaidoso e autoritário e com amizades perigosas na máfia russa, que Erdogan da Turquia tem dinheiro na Suíça? A coscuvilhice não tem limites mas devia ter. Será que iríamos gostar de ver a nossa correspondência diplomática revelada? Será que gostaríamos de ver a nossa opinião sobre vários assuntos e países reveladas ao mundo? E então as nossas conversas telefónicas, e-mails, etc? É assim como a revelação de escutas de processos em que ainda não há condenados, mas servem para o serem na praça pública, donde nunca mais sairão com o nome limpo. Julian Assange é o jornalista que se constitui Assistente num determinado processo, com o único interesse de revelar mediaticamente as suas escutas, e não, como devia, ter o interesse de defender as vítimas ou a verdade material. A gula mediática do Wikileaks não tem qualquer moralidade nem critério, e várias vidas foram e podem ser postas em risco. O mundo terá ficado mais seguro com as revelações do Wikileaks? A diplomacia será a mesma daqui para a frente? Tenho aquela visceral sensação que me dão as conversas de comadres que comentam a vida do vizinho. Aquela sensação de vómito de ouvir alguém a falar mal de a, b, ou c, só porque sim. Aquela estranha sensação de que as paredes têm ouvidos e está sempre alguém a ouvir.
Não concordo, todavia, com a detenção de Assange, porque me parece feita ao abrigo de um qualquer estratagema pseudo-judicial. Os amigos ingleses dos americanos continuam de gatas. Sou um crítico do sistema americano, da sua moralidade orgulhosa e pacóvia, das suas falcatruas imperialistas e capitalistas, mas com todos os seus defeitos é para lá que nos viraremos se o mundo estiver para explodir.

2 comentários:

Anónimo disse...

Epá....
Quase que tinhas um artigo, na minha opinião, imaculado. Mas, não!!!... Tinhas de o estragar ao falar das escutas, de dizer mal do sistema americano e ao por em causa a detenção de um senhor que se entregou num país escolhido a dedo...

Mas, estiveste quase lá...

tozé disse...

Roger,

Grande parte da malta exposta pelo wikileaks não é o que se pode chamar propriamente "vítima". e ao que sei, o site tema muita informação relevante, não é só invasões de privacidade.
Antes da invasão do Iraque em 2002 ou 2003, houve uma comissão da ONU para investigar a existência de armas de destruição maciça no Afeganistão e no Iraque. Esta comissão era chefiada pelo Mohamed ElBaradei e outro gaijo de que não me lembro do nome. Mas lembro-me de ver a conferência de imprensa de conclusão dessa comissão, onde eles disseram taxativamente que não havia armas, não havia indícios e não acreditavam que houvesse armas de destruição maciça nesses dois países. Curiosidade, esta conferência foi por volta das 11 da manhã, e nem os telejornais nem os jornais do dia seguinte abordavam sequer a questão, foi completamente branqueada para continuar a farsa de uma "justificação" para o início de uma guerra. Quando o wikileaks expõe documentos com provas de que o bush e o blair sabiam que não haviam armas, e mesmo assim resolveram invadir o iraque e começar uma guerra, quando expõe as máfias dos serviços secretos das grandes potências (o que eles chamam de inteligência), estão-nos a dar informação relevante. quando é assim, a privacidade de quem, com uma decisão joga com a vida de tanta gente, passa para um plano claramente secundário...