sexta-feira, 10 de setembro de 2010

A Casa Pia da Justiça - Dúvidas e Conclusões

O processo Casa Pia foi o maior e mais demorado em Portugal. E quando digo foi, refiro-me apenas às fases processuais pré-recursos, que podem demorar anos a ser resolvidos, só recursos interlocutórios são mais de 150!, e que só agora sobem ao Tribunal da Relação de Lisboa. Esperemos que os crimes não venham a prescrever (os primeiros prescrevem em 2016). Mas vamos por partes. Neste dia em que escrevo, ainda não foi entregue o acórdão às partes, afim de poderem conhecer a fundamentação do Colectivo de Juízes referente aos crimes pelos quais os arguidos foram condenados. E isto, passada que foi uma semana desde a leitura de uma súmula desse mesmo acórdão (leitura essa que devo dizer não devia ter acontecido perante as câmaras de televisão). Não acredito que a fundamentação ainda não estivesse escrita, isso seria no mínimo surreal e de certeza ilegal. Mas, a demora na entrega, diz claramente uma coisa, a Justiça em Portugal está doente, funciona mal e é incompetente. Um processo que começou mal e continuou mal, a última coisa de que precisava era de mais dúvidas, de mais adiamentos, de mais suspeitas.
Vamos aos factos: há vítimas de abusos sexuais na Casa Pia durante anos! Ponto final!
Existem muitas dúvidas no processo e várias incongruências. Também me parece indesmentível.
Assim sendo, aqui ficam algumas, que apesar de ainda não ter visto o acórdão, suscitam questões que em última análise, são no mínimo estranhas. E quase todas estas dúvidas dizem respeito ao arguido Carlos Cruz. Não vou fazer nenhum processo de intenções, nem sequer fazer a sua defesa, vou apenas tentar explicar porque é que a meu ver a Justiça saiu a perder, apesar das condenações.
É certo e sabido por todos que Carlos Cruz é talvez o melhor comunicador de sempre em Portugal, e não será alheio a isso toda a mediatização do processo, portanto, num processo que envolve tantas paixões e ódios, é natural que a imprensa use isso para moldar e condicionar a opinião pública (todos nos lembramos da ignomínia pornográfica da publicação de escutas no processo Face Oculta). Ultimamente porém, temos assistido a um virar de postura, Carlos Cruz finalmente pode dizer o que pensa, e ninguém como ele sabe utilizar os meios de comunicação ao seu dispôr. Quer através de entrevistas a televisões e rádios, quer através do seu site, que aconselho toda a gente a dar uma vista de olhos.
Ora, sem clamar pela inocência de Carlos Cruz, assaltam-me várias dúvidas, que no mínimo não me deixam formar uma opinião acerca da sua culpabilidade. Lembro que enquanto não transitar em julgado o acórdão, o arguido continua a ser presumidamente inocente. Assim, desde logo, a perseguição às bruxas que foi feita pelos media desde que o escândalo rebentou. A opinião pública foi formatada pelo maior poder que existe no nosso país, o poder dos meios de comunicação como forma de pressão e modelação de opiniões, que faz julgamentos na praça pública, condenando à partida qualquer tipo de defesa, porque ao contrário dos media que dizem o que querem, os advogados e arguidos não se podem pronunciar sobre processos em curso, desiquilibrando e muito os pratos da balança. Há alguém que tivesse tido dúvidas de que o Bibi, o Herman, o Carlos Cruz, o Paulo Pedroso, o Ferro Rodrigues eram culpados? Até o nome de Jorge Sampaio, essas sanguessugas publicaram como suspeito! A imprensa em Portugal é o maior inimigo de uma Justiça livre de pressões e de condicionamentos de uma opinião pública formatada, que não reflecte e assimila tudo o que lhe é imposto como verdade absoluta, sem conhecer por dentro o processo em causa. Existem obviamente excepções (tanto nas opiniões como no jornalismo), mas excepções que confirmam a regra. Num sistema de capitalismo desenfreado, o que interessa é vender, atropele-se seja quem for. Invente-se o que se quiser.
Porque é que só há rapazes no processo? Porque é que nenhum psicólogo acompanhou as vítimas nas várias inquirições, tal como disposto no Código de Processo penal? Porque é que só há um único arguido condenado (Carlos Cruz) nas orgias da casa de Elvas? Porque é que nenhuma das 900 testemunhas ouvidas viu nenhum dos arguidos nos locais dos abusos? Nunca ninguém viu nada em Elvas? Porque é que não existem registos de contactos entre arguidos, se supostamente era uma rede? Porque é que não houve escutas, vigilâncias e outros meios de prova a não ser a testemunhal (duvidosa em muitos casos) e pericial? Porque é que o Procurador escondeu uma suposta prova que dava conta de que o arguido Carlos Cruz não estaria num local à hora apontada por uma das vítimas? Porque é que os miúdos dizem que a casa de Elvas tinha sofrido alterações, quando tal não é verdade? Porque é que os miúdos não se conhecem nem nunca trocaram informações, se a verdade é que moravam juntos e até no mesmo quarto? Porque é que foram alteradas várias vezes as datas da acusação para baterem certo com os testemunhos, chegando a acusar-se algures num trimestre? Bem, talvez saiba a resposta à última pergunta, Herman José tinha sido acusado de estar num determinado sítio, em determinado dia a praticar um crime de abuso, quando se descobriu que nesse dia tinha estado em directo numa reportagem para a sic no carnaval do...Rio de Janeiro! Não foi pronunciado, obviamente... Eu não conheço o processo, mas tiro conclusões das peças processuais que são públicas, como as supra referidas.
Ora bem, a todas estas dúvidas, somam-se algumas certezas, a direcção do Partido Socialista de 2003 foi decapitada, o que levanta por si só mais algumas dúvidas, porquê? a mando de quem?. Veja-se como impunemente, no dia do acórdão se tentou envolver Jaime Gama. De novo os media em acção, formatando, pressionando, e condicionando, quer a opinião pública, quer o funcionamento da Justiça. A Justiça e a Política quando se confundem dá em asneira, quando não há separação de poderes, a democracia está em perigo, quando os media conduzem um processo, ninguém está a salvo. Mesmo os próprios Juizes não são alheios à pressão pública de um caso como estes...tinha que haver condenados a bem da Justiça e da nossa consciência colectiva. Imaginem o que não teria sido se fossem todos absolvidos, ou só o Carlos Cruz, o poderoso, o rico, o rosto...Faço aqui um parênteses para dizer que também não acredito que um colectivo de Juízes, num processo destes, condene sem provas, mas já vi acontecer no exercício da minha profissão, e posso garantir que o meu cliente foi absolvido em sede de recurso (claro que sem mediatismo nenhum). Também já vi um homicida ser condenado a 25 de anos de prisão e ninguém quis saber, só na noite em que aconteceu o duplo homicídio é que isso foi notícia, inclusivamente com directos nas televisões.
Só falta mesmo é o acórdão, para podermos aquilatar das convicções e fundamentações dos Juízes, uma vez que, a única prova em que se baseiam é a testemunhal. Sem acórdão, apenas posso dizer que existem dúvidas a mais, quando não devia haver nenhumas. A Justiça também se faz absolvendo.
Mais dúvidas: então ninguém é responsável por ter deixado esta situação chegar a este ponto? Quantos abusadores ficaram impunes em mais de 40 anos? E então a Catalina Pestana, não sabe o que se passa em casa? Andou a dormir? E os outros todos anteriores a ela?
Todas estas dúvidas deixam-me apreensivo. Não se pode deixar suspeitas no ar, depois de um processo como estes, principalmente em relação á culpabilidade dos arguidos, que eu entendo ser muito frágil. A competição mediática e o confronto político inquiniram o processo, e é por isso que digo que a Justiça não se redimiu e saiu a perder, ao contrário do que muitos pensam, apenas porque houve condenações que o Povo tanto ansiava.
Deixo também algumas possíveis soluções para que um caso destes não se volte a repetir. Proibição de os jornalistas se constituírem assistentes num qualquer processo, apenas para terem acesso à informação; Hierarquização do Ministério Público; Responsabilização criminal a sério, para editores e jornalistas que revelem peças, escutas, interrogatórios, nomes, ou qualquer informação, pelo menos enquanto o processo estiver em investigação e sujeito ao segredo de justiça; Obrigação de cumprimento de prazos para Procuradores e Juízes; Proibição de sindicatos de titulares de órgãos de soberania; Limitação do número de testemunhas; Obrigação de entrega dos acórdãos e sentenças com a respectiva fundamentação no dia da sua leitura...
Não sei se Carlos Cruz é culpado, tenho dúvidas, e estas a acontecerem depois de uma condenação deixa suja a Justiça e o País.

3 comentários:

António Magalhães disse...

Roger, assim fazes-me sentir estúpido... "ignomínia pornográfica"!?!?!?!? tive de ir ver ao dicionário o que significava... nunca tinha ouvido falar de pornográfica!!!

Tens muita razão no que dizes, eu também acho que o principal problema da justiça neste país é o facto como a opinião pública ser tão moldada (e moldável) pela comunicação social. Irrita-me profundamente o sentimento público generalizado de que basta uma pessoa ser acusada de alguma coisa para ser logo culpada; se entretanto for absolvida, é porque a justiça não funcionou. É muito triste, mas não acho que seja só culpa da comunicação social. Acho inclusivamente que as maiores fatias de culpa nisso são do povo e do sistema judicial. O povo, pela mentalidade que há de querer sempre ver sangue, do prazer de ver alguém preso; a comunicação social é um negócio, e como negócio vende o produto que o seu target quer consumir. O sistema judicial, por não se proteger contra esta guerra que a comunicação social lhe faz e, em muitos casos (como neste), se deixar arrastar por ela. Um sistema judicial que não enfrenta a luta desigual que lhe faz a comunicação social e se deixa arrastar por ela, a mim não me merece grande respeito. Sempre acreditei e continuo a querer acreditar na justiça, mas não me estão a fazer a vida fácil nesse aspecto.

Quanto ao processo Casa Pia, acho que, mais do que apurar culpados ou esmiuçar questões processuais, o verdadeiramente importante é garantir que situações como esta (abuso sexual de menores) não se possam voltar a repetir.

grande abraço

Mário Barreira disse...

Concordo contigo que a comunicação social têm um poder desmedido de influenciar a opinião pública, e esse poder é usado de um modo obscuro. Agora lembra-te que nem todos os arguidos e Advogados do Processo Casa Pia dispõem do mesmo acesso aos órgãos de comunicação. Justamente Carlos Cruz têm um acesso quase ilimitado para dizer o que bem entender, e o mesmo se diga dos seus Advogados, tempo de antena este que é absolutamente injustificável, a não ser por se tratar de uma pessoa do meio. O mesmo tratamento não é dado aos outros arguidos. Daí que com alguma certeza se possa dizer que o arguido Carlos Cruz também usa a comunicação social como bem entende, mas aqui claramente com uma agenda própria de fazer passar a sua inocência. Se é ou não inocente não sei que não tenho qualquer conhecimento do processo, contudo, têm que existir uma forte confiança na justiça, e se é verdade que por vezes se enganam e condenam inocentes a esmagadora maioria das vezes condenam quem têm que condenar. Ao inocente apenas lhe resta recorrer para os Tribunais Superiores, e com tantos graus de jurisdição dificilmente não conseguirá justiça.

Mário Barreira disse...

Questão diferente é o depósito e entrega do acórdão as partes. Vamos admitir que efectivamente aconteçeu um erro informático, custa-me a acreditar que o acórdão ainda não estava pronto, pois tal seria do meu ponto de vista uma razão suficiente para despromover os juízes em causa. Mas, sendo um erro informático o problema é igualmente grave pois nada a justifica (contudo, note-se que os arguidos em nada foram prejudicados, apesar da nuvem de poeira por alguns de imediato levantada), neste caso, como em todos, os erros informáticos são as desculpas modernas para o serviço mal feito ou para a incompetência, tanto mais que como utilizador entendo que os programas informáticos à nossa disposição para o acesso aos processos são bons, e aquilo que me têm dito é que o programa utilizado pelos magistrados é igualmente bom, como tal este erro não é justificável, e têm que ser encontrado um culpado.