terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Nelson Mandela

Não deixem de partilhar e de divulgar até à exaustão o legado de Mandela, para que sobreviva por muitos e bons anos, e para que ninguém deixe de saber o que a política pode fazer de bom quando ao serviço do povo, e feita por políticos que a sabem usar para esse fim. 
E porque traduz fielmente aquilo que penso, e porque não o escreveria melhor, aqui deixo a minha homenagem a Nelson Mandela, nas palavras de Daniel Oliveira, hoje, no Expresso Online:


"Não matem de novo Mandela

A melhor forma de anular um homem, e em especial um político, é torná-lo consensual. Depois da morte física mata-se, pelo elogio desmesurado e vazio de conteúdo, a memória política. É isso e apenas isso que me irrita no kumbaia internacional em torno de Mandela, transformado numa personagem romântica de Hollywood, com a vida quase resumida ao apoio que deu à seleção nacional de Rugby e ao olhar bondoso dum velhinho simpático.
Mandela foi um revolucionário. Considerado um radical e um terrorista por grande parte do ocidente e pela generalidade da direita europeia. Isto quase até às vésperas de ser libertado - ou seja, durante quase toda a sua longa existência. Constou, por decisão da administração Reagan, na lista de terroristas do Departamento de Estado norte-americano. Não se enganavam ao não o verem como um moderado. Foi contra a linha tradicional de resistência passiva do ANC, influenciada pelo pensamento de Gandhi, que, também ele, vivera muitos anos na África do Sul. Defendeu e usou a violência, tendo dirigido o grupo armado próximo do ANC, que ele criara em 1961, depois do massacre de Sharpeville. O MK (Umkhonto we Sizwe, Lança de uma Nação) contou com enormes resistências do pacifista e líder histórico do ANC, Albert Luthuli, que já se tinha confrontado com Mandela, ao defender o ingresso de não negros no ANC, que aconteceria em 1954, através do Congresso do Povo. Foi também Mandela o obreiro da aliança que dura até hoje com Partido Comunista da África do Sul, importante para conquistar apoios do bloco socialista. E conseguiu algum, no plano financeiro, político e militar.
A opção de Mandela pela luta armada não resultou duma posição de principio ou dum temperamento bélico, assim como não foi uma posição de principio ou um temperamento conciliador que justificaram sua posterior política de apaziguamento. Foi por puro pragmatismo, ao perceber que o regime e as potências ocidentais seriam insensíveis à via pacifica de resistência, durante uma guerra fria que o deixava a ele do "lado errado da história" e fazia do regime do Apartheid um mal menor para uns EUA, eles próprios com pouca sensibilidade para temas como a igualdade racial. Por isso, aceitou que a guerra civil, sendo indesejada, poderia vir a ser inevitável. E que teria como aliados internacionais aqueles que estavam dispostos a sê-lo.
Depois de 27 anos de prisão, Mandela não se deixou cegar pelo rancor, que aparentemente desconhecia. Essa é talvez a sua mais admirável qualidade humana. Mas seria bom não simplificar estas coisas. Não é apenas por um espírito vingativo que as mudanças nas sociedades degeneram em violência. Nem por descontrolo ou falta de visão. É também, e quem o escreve é um pacifista, porque a paz, e não apenas a guerra, tem um preço. Se assim não fosse, não encontraríamos um homem bom e justo com uma arma na mão. E história está cheia deles.
Por causa da escolha da via do apaziguamento e reconciliação (apenas possível porque a queda do muro de Berlim tornava Mandela aceitável aos olhos do ocidente), o fim do apartheid não correspondeu ao fim da segregação social, da miséria, da violência, da criminalidade e da desigualdade extrema. Na realidade, pouco as atenuou. Porque aceitar que a estrutura social não se alterava radicalmente era a única forma de impedir uma reação da minoria branca. E era a única forma de travar as aspirações de milhões de negros, apenas alcançáveis, pelo menos numa geração, por uma autêntica revolução social necessariamente violenta. Só a autoridade histórica de Mandela, que nascia da sua luta, dos anos de prisão e da sua radicalidade - e não de ser um velhinho bondoso -, podia travar as alas mais radicais do ANC (de que ele fizera parte). Muitos elogios ao espírito de reconciliação de Mandela ignoram que para haver reconciliação é preciso ter havido luta. Só negoceia quem combateu. Só modera quem teve a coragem de ser radical quando a realidade contra a qual lutava era radicalmente injusta. E que autoridade de Mandela para, aos olhos dos que então se libertavam do apartheid, ser o pai dessa reconciliação eram as suas credenciais de vigoroso combatente.
A verdade é que o apaziguamento implicou cedências, e o preço foi bem alto: não se rompeu com a injustiça social do passado. Não digo que tenha sido errado. Parece-me mesmo que era a única solução sensata. Mas preferia que não se reduzisse esta escolha tremenda às qualidades humanas de quem sabe perdoar. Esta capacidade é necessária, mas não é suficiente nem prevalece sobre tudo o resto. Mandela fez, antes de tudo, uma escolha política que, sendo na minha opinião acertada, teve grandes custos e era pelo menos discutível.
E estas escolhas tiveram também um preço político. Só era possível manter este rumo com um ANC coeso, sob a batuta moral e simbólica de Mandela, que foi apadrinhando as sucessivas lideranças, sem grande intervenção nas suas escolhas fundamentais. Graças a essa tutela de Mandela, o ANC manteve, de facto, o peso que antes tinha, com raras dissidências que acabaram por se revelar pouco relevantes. O resultado foi que à ditadura do apartheid sucedeu um sistema partidário em que apenas um partido ambiciona a vitória e onde tudo se decide nas suas violentas lutas intestinas. E isso contribuiu de forma decisiva para que permanecessem os níveis de corrupção que o ANC não só não combateu como deles se alimentou e que salpicam de lama quase todos as principais figuras da organização. À velha elite branca juntou-se uma elite negra que orbita em torno do ANC e que dele se serve.
Sobre esta transição, aconselho vivamente um documentário de Jihan El-Tahri (trailer no início). A realizadora libanesa é autora de outros documentários sobre o envolvimento cubano em África - demasiado simpático para Havana, na minha opinião - e um excelente trabalho sobre a Arábia Saudita. Em "Behind the Rainbow", El-Tahri, que parece ter simpatia por Mandela, abandona as imagens românticas e faz uma análise política rigorosa da África do Sul e da história do ANC. São relatados os conflitos e tensões no interior do ANC, mesmo antes da prisão de Mandela. Conflitos que acabariam por desaguar, mais recentemente, na vitória de Jacob Zuma, que era visto como um "radical" dentro do movimento.
O filme é denso, contraditório e sem respostas fechadas. Tudo ao contrário do enjoativos panegíricos que tenho lido sobre Mandela. É que nenhum panegirico é merecido, porque reduz o homenageado à sua própria caricatura. Jihan El-Tahri faz o esforço contrário. Não sei mesmo se não se torna, na vontade de ser rigorosa, demasiado severa com Mandela, que quase acusa de demissão na fase de consolidação da democracia, entregando de forma acrítica o poder a um Thabo Mbeki, tratado, com toda a justiça, como o padrinho da nova elite negra, que não parece ser mais sensível ao sofrimento dos sul-africanos mais pobres do que era a elite branca.
Justa ou injusta, a realizadora contraria um olhar sobre a África do Sul que se fica sempre pela questão racial e pelo risco de guerra civil. Recorda-nos que, como em todo o lado, há outras esferas do confronto político. Começando pelo esfera social, onde os mesmos debates que aqui temos são centrais: desigualdade, distribuição da riqueza, direitos sociais, papel do Estado e do mercado. Isto num país que vive numa desigualdade extrema. E a diferença entre um político e um líder religioso, é que o político, tendo de lidar com estas escolhas práticas, nunca pode aspirar, se quer agir, à santidade.
Na África do Sul, porque a vida continuou depois do fim do sistema formal de segregação racial, quando o mundo suspirou de alivio por ali não ter havido um banho de sangue, algumas escolhas que Mandela fez, e outras tantas que não fez, foram determinantes. E quase todas esbarraram com o mais difícil de todos os dilemas políticos: devemos aceitar a desigualdade extrema para ter a paz ou temos a obrigação de escolher a guerra para conquistar a justiça? Resumir estas escolhas à bondade de um homem, despindo-o de todos os dilemas morais e cálculos políticos, é pura e simplesmente infantil.
Pode parecer o contrário com este texto, mas tenho por Mandela uma infinita admiração que não divido, na mesma dimensão, com nenhum político vivo. Mas ela baseia-se na paixão pela política, que tem sempre uma dimensão ética e moral, mas que nunca se fica por aí. Não no desprezo pela ação política, típico em quem procura santos e heróis românticos entre governantes. Mandela foi um homem bom e, pela sua combatividade e contenção, foi e será sempre um herói. Mas foi um herói político. Fez escolhas difíceis e discutíveis. No momento em que o ANC era frágil e não contava com o apoio do ocidente, escolheu a violência quando outros teriam preferido manter a linha pacifista. Quando o poder lhe estava quase nas mãos, escolheu o apaziguamento contra os que queriam correr todos os riscos para combater o legado social e económico do apartheid (e não apenas ou sobretudopara se vingarem), de que só uma pequena elite negra se viu livre.
As escolhas que fez tiveram muitas vantagens e grandes custos. Todos imaginam os rios de sangue e de ódio, tão comuns por aquelas e por outras paragens, se Mandela tivesse seguido o caminho oposto ao do apaziguamento. Mas também não podemos ignorar que o apaziguamento se pagou com uma interminável "guerra civil" de baixa intensidade, através do crime e da violência inerentes à desigualdade extrema. E na degradação moral de grande parte dos líderes do ANC (com Mandela de fora, como exemplo raramente seguido), mergulhados num sistema em que apenas uma pequena elite dirigente vive fora dum apartheid social ainda vigente.
O que interessa é saber que Mandela não foi uma estátua. Foi uma pomba e um falcão, foi um combatente, um negociador, um calculista e um pragmático. O que me custa, em quase tudo o que tenho lido e ouvido sobre ele, é o assassinato da sua vida e da sua história. Como se a política se resumisse à escolha entre o bem e o mal. Como se Mandela tivesse sido apenas um homem bom. Ao contrário do que pensam os cínicos, há muitos homens bons no mundo. O que é raro é, como Mandela, terem a coragem de dispensar a santidade e preferirem a política, esse mundo "sujo" repleto de escolhas perigosas e gestos calculados."

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