sexta-feira, 14 de março de 2014

É melhor estarem caladinhos

A dívida portuguesa é impagável nos próximos anos tal e qual como está previsto nos moldes actuais. O manifesto pela reestruturação da dívida assinado por 74 personalidades de amplos sectores e diversos campos da área política, entre eles dois ex-ministros das Finanças (Ferreira Leite e Bagão Félix) e até dois, (agora ex), consultores de Cavaco, propõe um caminho diferente. Apesar de não ser a solução, inicia uma base para atingir essa solução. Aponta sobretudo a falta de uma verdadeira reforma do Estado como o maior problema que o país enfrenta e a reestruturação da dívida proposta pelo devedor como forma de a tornar sustentável e pagável. A reforma do Estado está por fazer. Os cortes salariais e nas pensões, o aumento de impostos e facilitação dos despedimentos tornando-os mais baratos, ainda que os ilegais, não são de forma nenhuma a reforma do Estado que se impunha. O último exemplo surgiu a semana passada com os protestos das polícias. Abstendo-me agora de comentar a manifestação junto da AR, a verdade é que também nesse sector nada foi feito para reformar o sistema de segurança e da administração interna. O que se verifica nesse como noutros sectores são os cortes cegos. Como na saúde onde um acidentado em Chaves só é atendido em Lisboa. Como na justiça, em que as populações têm que fazer centenas de quilómetros para aceder aos tribunais em vias de encerrar ou de perder competências (debate que ainda não vi em nenhum lado). O país está melhor, dizem, mas as pessoas estão pior. Exacto. Um país sem pessoas seria bem mais fácil de gerir.
Mas o que fica mesmo do manifesto foram as reacções. Desde acusações de radicalismo e eleitoralismo, até às propostas da lei da rolha, vindas dos muito na moda jornalistas/comentadores/escritores/economistas, donos da razão e arautos da verdade, mas só da deles. Os outros é melhor estarem caladinhos. Não se pode desagradar à troika e aos mercados. É melhor comer e calar. Pensar de forma diferente, apontar outras soluções deve ser calado e contrariado sem debate. A forma mais séria, honesta e democrática dos dias que correm. Uma proposta desta natureza que contraria o pensamento dominante da inevitabilidade que nos venderam até aqui não pode sequer ser expressa. Era só o que faltava haver gente a pensar de forma diferente do governo e dos seus cães de fila. Onde é que isso já se viu...
Curioso é notar, todavia, que o que o manifesto defende não é em nada diferente do que Cavaco escreveu no mais recente prefácio aos seus 'Roteiros'. Cavaco é sem querer o subscritor setenta e cinco do manifesto. Anda para aí muita gente distraída.

O que diz o manifesto:

"Nenhuma estratégia de combate à crise poderá ter êxito se não conciliar a resposta à questão da dívida com a efectivação de um robusto processo de crescimento económico e de emprego num quadro de coesão e efectiva solidariedade nacional."
"A dívida pública tornar-se-á insustentável na ausência de crescimento duradouro significativo: seriam necessários saldos orçamentais primários verdadeiramente excepcionais (...)."

O que diz Cavaco:

"A situação portuguesa melhorará se a União Europeia for mais ativa e eficiente na promoção do crescimento económico e na criação de emprego."
"Será decisivo para que, no período "pós-troika", se possa conciliar o respeito pelas regras europeias de equilíbrio orçamental e a redução do desemprego, o crescimento dos salários e das pensões, a melhoria da qualidade dos serviços públicos, como a educação e a saúde, e a resposta que ao Estado cabe dar no combate à pobreza e à exclusão social."
"É essencial proceder à correção de injustiças acumuladas no período de execução do programa de ajustamento."
"Pressupondo um crescimento anual do produto nominal de 4% e uma taxa de juro implícita da dívida pública de 4%, para atingir, em 2035, o valor de referência de 60% para o rácio da dívida, seria necessário que o Orçamento registasse, em média, um excedente primário anual de cerca de 3% do PIB. Em 2014, prevê-se que o excedente primário atinja 0,3% do PIB."

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