quarta-feira, 21 de setembro de 2016

A classe média dos ricos

Por norma ninguém é a favor de aumento de impostos ou da criação de novos impostos. Não fujo à regra. Mas a celeuma com o ainda projecto de tributação de património acima de um milhão de euros parece até mentira. Isso ou então há muita gente por aí com património desse valor ou acima. Se calhar dissimulado. Isso e a divulgação de tal projecto ter sido protagonizado por Mariana Mortágua, uma perigosa 'comuna', alvo de ataques pessoais, ignorantes e cobardes.
A direita apareceu indignadíssima com o ataque "monstruoso" que a geringonça se prepara para fazer à classe média. Parece que um imposto sobre um património imobiliário avaliado anualmente num milhão de euros acordou a direita para uma “política para as pessoas, as da classe média”.
Em matéria de escolhas políticas fiscais e de cortes de rendimentos, o último governo entendeu que um pensionista e funcionários públicos com uma pensão de 600 euros eram classe média, pelo que decidiu cortar definitivamente dois meses da vida dessas pessoas. Esse ataque ao conceito de classe média do então governo laranja e azul só não foi definitivo porque 17 deputados do PS e BE e, depois, todos os partidos da esquerda impugnaram a infâmia junto do TC.
Em matéria de conceito de classe média, o anterior governo tinha por rico a abater fiscalmente, com o seu enorme aumento de impostos, gente com rendimentos abaixo dos mil euros brutos mensais, disse ter aumentado as pensões mínimas, nunca dizendo que o fez à custa do esbulho do Complemento Solidário para Idosos, tinha preparado um corte de 600 milhões de euros nas pensões, introduziu a sobretaxa no IRS, que a geringonça eliminou contra a vontade dos súbitos puritanos, opôs-se no último OE à redução do IRS sem aumentar o IRC, isentou de impostos os fundos de investimentos imobiliários, que a geringonça fez acabar, está contra o aumento do salário mínimo, contra a reposição do valor do Complemento Solidário para Idosos e do valor de referência do Rendimento Social de Inserção, para um total de 440 mil portugueses.
É confrangedor ver o PSD e o CDS a falarem de classe média quando olhamos para as suas escolhas políticas enquanto governantes. Quem rebentou com a classe média foi precisamente o governo anterior.
Neste momento e à míngua de argumentos, redescobriram a classe média, numa deriva populista que tão só visa a sobrevivência política de Passos e Cristas. E chega à idiota conclusão que agora a classe média não é quem ganha 600 euros, como no passado, é quem tem um património imobiliário anual avaliado em mais de um milhão de euros.
E o que significa afinal deter património avaliado em mais de um milhão de euros? Uma mansão? Dez apartamentos? Quatro casas de luxo? Um prédio, ou dois, ou três?
Onde estavam estes senhores da 'classe média' quando se cortaram salários, pensões, reformas, apoios sociais e se taxaram os mais pobres?
Esta medida prova que finalmente se está a mexer com os mais poderosos, com os mais ricos, e com alguns biltres que lucram com a desgraça alheia.
Se não achasse inconstitucional, seria cem por cento a favor do levantamento do sigilo bancário e aí sim podiam ter a certeza que muita gente teria que prestar contas, quase todas à justiça.
Em matéria de coerência Passos Coelho já nos habitou à falta dela... e nem vou perder tempo com a porcaria em que se meteu com a certa, hipotética e gorada apresentação do 'livro' do arquitecto Saraiva...


quinta-feira, 15 de setembro de 2016

O modelo experimental europeu

Terminada a chamada silly season, passou ao lado de muita gente o relatório pedido pelo FMI sobre o programa da troika em Portugal. E não terá sido inocente. Não diz nada que já não se tivesse dito. Foram muitas as vozes a chamar a atenção dos erros flagrantes do chamado plano de resgate, das prioridades trocadas, da destruição do tecido económico que inevitavelmente aconteceria, do desemprego e emigração que provocaria.
Essas e muitas outras críticas foram feitas antes da sua implementação e, sobretudo, quando eram já mais que óbvias as falhas do programa. O próprio Vítor Gaspar as reconheceu na sua célebre carta de despedida. O próprio FMI já tinha noutras ocasiões admitido vários erros.
Nesse relatório o que lá está é o seguinte: o programa da troika falhou em toda a linha. Ponto. Os pressupostos estavam errados, enganaram-se nas fórmulas e nos seus efeitos e, claro, nenhum dos problemas estruturais da nossa economia melhorou, a sustentabilidade da dívida pública e da balança continua tão débil como antes e até o crescimento das exportações - visto como um dos sucessos do programa - ou o celebrado regresso aos mercados - os autores do relatório com uma mal disfarçada vergonha sugerem que não será evidente que isso não tenha sido consequência das políticas do BCE - em nada esteve relacionado com a malfadada receita. Ou seja, ajudou-se a destruir o nosso sistema bancário e, surpresa das surpresas, chega-se à conclusão de que uma restruturação da dívida teria sido uma medida bem vinda.
O pior de tudo não é perceber que se mandaram para o desemprego milhares de pessoas, não foi termos perdido milhares para a emigração, não foi só ver o factor trabalho humilhado com a aposta em salários baixos, não terá sido a aposta no empobrecimento, não foi por a receita ter produzido um país ainda mais desigual e mais injusto.
O que mais choca no relatório não é a assunção dos erros, é perceber a ligeireza com que se fizeram experiências com as vidas das pessoas, como meras cobaias ao serviço de uns senhores que nunca tinham testado uma fórmula, e com a cobertura de um ex-primeiro Ministro que serviu em bandeja um país inteiro e que continua interessado no insucesso do atual modelo em gestão.
E depois, e ainda segundo o FMI, o Deutsche Bank é o maior risco sistémico em todo o mundo. Mas não deixa de ser curioso que, com uma bomba relógio em casa, Shauble tenha obrigado a Europa a entreter-se com a destabilização de Portugal. Se essa bomba lhe rebentar nas mãos, os famigerados limites do défice serão uma brincadeira de criança e a Alemanha voltará a violar esses limites, como já o fez por várias vezes e sem qualquer sanção ou sequer ameaça.
Desde o Brexit que a Alemanha intensificou o bullying sobre Portugal. O objetivo é mostrar mão firme depois da debandada britânica ou criar problemas a um governo que não lhe agrada. E a direita portuguesa, responsável pela derrapagem do défice do ano passado, volta-se a comportar como o cordeirinho degolado e de joelhos à espera que alguém lhe venha um dia a dar razão.
Basta ver os novos empregos da nossa anterior Ministra das Finanças e do anterior Presidente da Comissão Europeia para se perceber de que lado estavam enquanto nos ‘governavam’. O código de ética não pode ser só para alguns, deveria ser para todos.

P.S. – Costumo dizer em tom de brincadeira que os heróis que conheço estão todos mortos. Mas conheço uns quantos bem vivos, os nossos bombeiros, bem hajam...

Publicado hoje no semanário 'A Voz de Chaves'